Delações vão originar mais de 200 investigações em Mato Grosso

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LUCAS RODRIGUES
DA REDAÇÃO

Se na esfera criminal os promotores de Justiça mato-grossenses ainda deverão aguardar um bom tempo até que o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), possa (ou não) desmembrar a delação “monstruosa” do ex-governador Silval Barbosa (PMDB), o mesmo não ocorre na esfera cível.

 

Segundo o titular do Núcleo de Ações de Competência Originária Cível (Naco Cível), promotor Clóvis de Almeida Júnior, os documentos devem chegar ao Ministério Público Estadual (MPE) até o final do mês e resultar em mais de 200 investigações de improbidade, até o final do ano.

 

“O STF não vai investigar a improbidade. Quem vai investigar a improbidade somos nós, é o Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Hoje, estão em andamento aproximadamente 47 investigações no Naco Cível. Com a colaboração que chegou, vão ser instaurados mais 39. E com essas outras colaborações que estão para chegar, eu consigo dimensionar que, até o final do ano, o Naco Cível esteja com cerca de 250 investigações em andamento”, disse.

 

Criado há pouco tempo, o Naco Cível tem como uma das atribuições a investigação de atos de improbidade de agentes públicos com foro de investigação na chefia do MPE. Ou seja, a improbidade cometida no exercício do cargo por chefes ou ex-chefes de Poderes, a exemplo do próprio Silval.

É uma responsabilidade grande você pedir o afastamento de um titular de mandato eletivo, seja ele prefeito, seja ele deputado, seja vereador. Mas as medidas serão tomadas

 

Em relação aos demais citados na delação que não se enquadram nessas hipóteses, as investigações deverão ser conduzidas pelos outros sete promotores do Núcleo de Patrimônio Público e Probidade Administrativa.

 

Clóvis de Almeida, no entanto, garantiu que o trabalho será feito em conjunto e não descartou que o grupo possa pedir o afastamento dos envolvidos que ainda exerçam cargo público.

 

“O que a gente precisa analisar é a profundidade disso tudo. E não dá para fazer a toque de caixa. É uma responsabilidade grande você pedir o afastamento de um titular de mandato eletivo, seja ele prefeito, seja ele deputado, seja vereador. Mas as medidas serão tomadas. Serão rápidas, mas não serão açodadas”, afirmou.

 

Confira a íntegra da entrevista com o promotor Clóvis de Almeida Júnior: 

 

MidiaNews – O senhor atuava no Núcleo de Defesa do Patrimônio Público e da probidade Administrativa e foi, recentemente, nomeado no Núcleo de Ações de Competência Originária (Naco), na esfera cível. Qual é exatamente a função desse núcleo?

 

Clóvis de Almeida – O Naco Cível nada mais é do que um órgão autônomo para a execução da ação originária do procurador-geral de Justiça. A atribuição do Naco é basicamente aquilo que eu faço no núcleo do Patrimônio Público, com a diferença de que são as investigações de improbidade quando há titular de prerrogativa de ser processado pelo procurador-geral de Justiça, ou seja, só chefes de Poder: governador, ex-governador, presidente da Assembleia, presidente do Tribunal de Contas, presidentes e ex-presidentes por atos praticados no exercício da chefia de Poder.

 

MidiaNews – Na prática, como funciona?

 

Clóvis de Almeida – Vamos pegar só um exemplo, não que isso tenha acontecido alguma vez. O [Guilherme] Maluf, quando era só deputado, vamos supor que praticou um ato que está sendo investigado. Ele se tornou presidente da Assembleia, ficou dois anos no cargo. A investigação então tem que subir ao procurador-geral. Aí ele voltou a ser só deputado, então volta para o promotor. Por quê? Por que o ato foi praticado enquanto ele não era chefe de Poder. Seria diferente se ele, enquanto presidente da Assembleia, praticasse um ato e esse ato estivesse sendo investigado pelo procurador-geral. Quando ele deixa de ser presidente, o ato continua a ser investigado pelo procurador-geral. Porque a nossa lei estabelece que a prerrogativa é em razão do ato ter sido praticado enquanto chefe de Poder. É diferente da lei penal. Na lei penal, a pessoa deixou de ser deputado, ela perde a prerrogativa de foro e o processo desce para o primeiro grau.

 

A diferença é que antes da criação do Naco Cível, o procurador-geral delegava para os próprios promotores do Núcleo do Patrimônio essas investigações. O que vai mudar com o Naco Cível, é que ao invés de haver essa delegação para o Núcleo, ela vem para um promotor ou procurador específico. No final da história, aumentou o número de promotores que investigam a improbidade. Porque no meu lugar tem um promotor substituto. Então continuam sete promotores no Núcleo do Patrimônio, mais o Naco Cível. Como eu sou oriundo do Núcleo do Patrimônio, a gente tem uma sintonia muito boa com os demais colegas.

 

MidiaNews – O senhor vai ter uma estrutura diferenciada por conta dessa nova atribuição?

 

Clóvis de Almeida – Além da improbidade, o Naco Cível tem outras atribuições. Então não dá para trabalhar no Naco Cível com a estrutura de uma promotoria. Até porque no Naco Cível a resposta tem que ser um pouco mais rápida. As investigações têm que ser mais céleres. Por ora, a gente optou por copiar a estrutura do Naco Criminal. Se houver a necessidade, o procurador-geral se comprometeu a ampliar essa estrutura.

Alair Ribeiro/MidiaNews

“O comprometimento do procurador-geral é diante dessas colaborações e de todo esse material que chegar, constituir, até mesmo, um grupo de trabalho ou uma força-tarefa”

 

MidiaNews – O senhor já tem uma base de quantas investigações vão chegar com a criação do Naco Cível?

 

Clóvis de Almeida – Estão em andamento aproximadamente 47 investigações. Com a colaboração que chegou, vão ser instaurados mais 39. E com essas outras colaborações que estão para chegar, eu consigo dimensionar que até o final do ano o Naco Cível esteja com cerca de 250 investigações em andamento.

 

MidiaNews –  Essas colaborações que o senhor citou são as delações do ex-governador Silval Barbosa e família, feitas à Procuradoria-Geral da República?

 

Clóvis de Almeida – Sim, entre outras colaborações que estão chegando. A do Silval é a que se tornou pública. Temos material que não é público.

 

MidiaNews –  A do Silval, por si só, deve resultar em quantas investigações?

 

Clóvis de Almeida – Veja bem, eu sei quantos anexos são. Mas eu não tenho a informação se cada anexo desses se transforma em uma investigação. Porque tem fatos que o Silval conta que outros já contaram, então aí já temos investigações abertas. Eu só vou conseguir ter essa ideia depois que eu conseguir cruzar os anexos do Silval e verificar o que vai ser repetição. Até porque pode acontecer o seguinte: o Silval veio e fala de determinado fato que está sendo investigado pelo Núcleo de Patrimônio. A partir do momento em que há envolvimento de ex-governador do Estado de atos praticados enquanto governador, a investigação vai subir. Então é um inquérito que já existe e vai subir. O comprometimento do procurador-geral é, diante dessas colaborações e de todo esse material que chegar, constituir até mesmo um grupo de trabalho ou uma força-tarefa para poder analisar todo esse material e dar a destinação adequada no menor tempo possível.

 

MidiaNews – Um desses fatos repetidos seriam as questões já investigadas na Operação Ararath, certo? Como a compra de vaga no TCE, propina de empreiteiras…

 

Clóvis de Almeida – A Ararath já tem ações propostas, várias. Naquilo que ele traz informações para as ações, esse material vai ser juntado lá nas ações ao invés de ser criada uma investigação nova. A compra da vaga no TCE já está judicializada. O conselheiro [Sérgio Ricardo] já está até afastado. E há outras ações propostas com base na delação da Ararath. Então nós faremos a análise para complementar. E aonde não está com o Naco Cível, está com algum promotor. A intenção não é tirar nenhuma investigação da promotoria, mas agir em conjunto. Desde o começo do ano, existe um ato que determina o trabalho integrado entre as promotorias, entre os núcleos do Ministério Público, sejam núcleos da Procuradoria, sejam núcleos das promotorias de Justiça.

 

Além da sintonia natural, por trabalharmos juntos há dez anos ou mais, nós temos também a obrigação institucional e legal de fazer essa troca de informações para evitar a duplicidade de investigações e também para possibilitar uma visão mais abrangente do quadro que está sendo investigado. A interação entre Naco Cível, Núcleo do Patrimônio, Gaeco [Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado], Naco Criminal e Promotorias de Crimes Contra a Administração, está sendo feita.

 

MidiaNews – Então, só para não ficar nenhuma dívida: os promotores aqui do Estado podem investigar os fatos narrados na delação do Silval, na esfera cível, independentemente do fato de o ministro Fux estar com a investigação da delação do Silval na esfera criminal?

Porque ali pode haver informações de novas pessoas que podem ser incluídas nas ações, novas condutas. Mas os fatos em si não são novidade

 

Clóvis de Almeida – Isso, porque o STF não vai investigar a improbidade. Quem vai investigar a improbidade somos nós, é o Ministério Público do Estado de Mato Grosso. O que acontece é o seguinte: é absolutamente contraproducente eu começar uma investigação com base em notícia de jornal quando a colaboração vai ser encaminhada para gente. Porque além de tudo, eu preciso tomar muito cuidado com a fonte da minha informação. E a fonte sendo uma reportagem e a fonte sendo o ministro do Supremo, eu vou no ministro do Supremo. Já tem pedido tanto da Procuradoria Geral da República quanto nosso para que essas colaborações sejam remetidas ao Ministério Público na esfera cível. O Janot já se manifestou no sentido de que o fatiamento criminal não vai ser agora, mas o compartilhamento na esfera cível, esse sim é atribuição do Ministério Público Estadual.

 

MidiaNews – O Ministério Público ainda aguarda uma decisão do ministro para ter acesso oficial a estas colaborações?

 

Clóvis de Almeida – Sim. Acho que não vai demorar para termos essa decisão. Creio que até o final do mês teremos essa documentação aqui.

 

MidiaNews – E qual a sua visão geral dessa delação do Silval?

 

Clóvis de Almeida – Essa delação não trouxe novidade nenhuma. O que ela trouxe são provas. Muito do que está sendo agora divulgado era do conhecimento não só do Ministério Público, mas do conhecimento da população. O que está acontecendo é que com essas investigações, que não surgem agora, que não são frutos da delação do Silval, são frutos sim da investigação iniciada pelo Gaeco lá atrás, quando a gente tomou conhecimento dessas ocorrências e os inquéritos foram instaurados.

 

Dessa colaboração do Silval, tem muita coisa que já está instaurada. E a colaboração é mais uma prova. A Operação Arqueiro [que investigou fraudes na Setas] é um exemplo. Agora que a ex-primeira-dama [Roseli Barbosa], que é ré, vem e confessa as coisas que aconteceram há mais de três anos. Dizer que nós estamos surpresos não é verdade. O Ministério Público não está surpreso de jeito nenhum. Estamos aguardando o compartilhamento dessa prova toda para que ela possa ser utilizada e a responsabilidade possa ser efetivamente atribuída a quem quer que seja. Porque ali pode haver informações de novas pessoas que podem ser incluídas nas ações, novas condutas. Mas os fatos em si não são novidade.

 

MidiaNews – No caso específico da propina paga a deputados, fato que foi filmado. Essa situação pode gerar, por parte do MPE, um pedido de afastamento dos envolvidos que ainda detém cargo público?

 

Clóvis de Almeida – Isso vai ser avaliado dependendo da prova, com muita cautela. Até porque quem processa deputado por improbidade não é o Naco, são os promotores. O deputado não tem prerrogativa de ser processado pelo procurador-geral. O presidente da Assembleia tem. E isso vai ter que ser objeto de deliberação coletiva. Não é uma decisão que o promotor vai tomar sozinho. Agora, o pedido de afastamento de um titular de mandato eletivo tem que ser extremamente bem fundamentado e calçado em provas. Porque você não revoga a vontade do povo de forma unilateral e baseado em prova que ainda vai ser discutida. O que temos hoje é indício de prova. A prova mesmo é depois do exercício do contraditório. Nós vamos analisar tudo, até porque o que foi divulgado não é o total da colaboração. E depois de isso ser analisado coletivamente, vamos tomar a medida adequada.

Alair Ribeiro/MidiaNews

“As decisões complexas são debatidas. É aquela história: da porta para dentro, a gente quebra o pau. Mas, a gente sai dali com uma solução”

 

MidiaNews – Com os documentos apresentados por Silval, como anotações, cheques, extratos bancários, vai ficar mais fácil rastrear o esquema e produzir essas provas?

 

Clóvis de Almeida – Esse material vai colaborar com as investigações. O que a gente precisa analisar é a profundidade disso tudo. E não dá para fazer a toque de caixa. É uma responsabilidade grande você pedir o afastamento de um titular de mandato eletivo, seja ele prefeito, seja ele deputado, seja vereador. Mas as medidas serão tomadas. Serão rápidas, mas não serão açodadas.

 

Um dos fatores de eu ter continuado no prédio do Núcleo do Patrimônio, é essa facilidade de atuar em conjunto. Um grande diferencial do Núcleo do Patrimônio do Ministério Público com outros núcleos do Patrimônio que nós conhecemos, é que em Mato Grosso nós agimos como núcleo. As decisões complexas são debatidas. É aquela história: da porta para dentro a gente quebra o pau. Mas a gente sai dali com uma solução, com condutas coerentes. Isso evita que um promotor tenha a caneta mais pesada do que o outro. Eu trabalhar lá na Procuradoria, distante do Núcleo do Patrimônio, perderia esse feedback que eu tenho com os colegas. Tenho 20 anos de MPE, sendo 12 no Patrimônio.

 

MidiaNews – Pelo que o senhor já vislumbrou, quais as possíveis medidas a serem tomadas daqui para frente, especialmente quanto aos investigados que continuam exercendo cargo público?

 

Clóvis de Almeida – Pois é. Eu tenho que fazer uma análise técnica e jurídica da situação. Se eu responder isso, vou estar te adiantando as medidas que serão tomadas e isso pode ser até colocar em risco as investigações. O melhor é agir com cautela e propor a medida no momento adequado, sem estardalhaço, sem espetacularização, para que a gente possa ser efetivo. Se a população efetivamente estivesse revoltada, ela já estava na rua pedindo cabeças. Mas o que a gente percebe é que há uma certa acomodação diante de tanta notícia de corrupção.

 

MidiaNews – Boa parte dos procedimentos que tramitam no Naco é sigilosa. Quando essa documentação da delação aportar aqui, os procedimentos instaurados também tramitarão em sigilo?

 

Clóvis de Almeida – O sigilo permanece enquanto existir essa necessidade de diligência. Porque se eu recebo uma representação aqui e preciso fazer uma busca e apreensão, uma interceptação. Se eu divulgo isso, independente de ser Naco Cível ou Criminal, ou qualquer investigação, eu dou ao investigado a oportunidade de conversar com uma testemunha, orientar a testemunha, de falsificar a situação e prejudicar a situação. Então a decretação do sigilo é objetiva. Se eu receber algo de fatos que já estão consolidados, documentados, isso eu não decreto sigilo. Porque eu vou lá arrecadar informação. Agora, se eu estou com a investigação ativa, aí vou decretar sigilo. Isso eu faço tanto na minha promotoria quanto farei no Naco Cível. É uma questão de estratégia de investigação.

 

MidiaNews – O senhor acha que as notícias de corrupção são tantas, e cada vez mais graves, que a própria população já não consegue mais se espantar com nada?

Eu vou fazer a análise da prova e entrar com a ação adequada. Vou fazer isso da forma mais célere possível, mas sem açodamento, sem atropelo

 

Clóvis de Almeida – Não acho que banalizou, porque acredito que não tenha sido diferente no passado não. Eu dou graças a Deus pelo Brasil ter chegado nesse estágio que está hoje, porque está aparecendo o mal feito. Isso hoje está sendo divulgado, está na imprensa, está na televisão, todo mundo está vendo. A corrupção vem desde o descobrimento do Brasil. Hoje estamos conhecendo melhor os bastidores da cúpula da administração pública, e isso não foi diferente no passado. Eu não tenho a ilusão de que a corrupção é recente. Mas o combate está resultando pela primeira vez em aplicação de pena, em prisões, em recuperação de dinheiro, isso sim é recente. Isso demanda não só uma mudança jurídica, mas uma mudança social. É um parto, é dolorido, é demorado, não vamos passar por isso sorrindo. Mas espero que depois de toda essa turbulência e de tudo que está acontecendo, o Brasil melhore em grau civilizatório.

 

Então no ano que vem só vota mal quem quiser, ou quem for corrupto junto. Porque são essas pessoas que colocam os políticos lá, que escolhem quem vai ser o seu representante no Legislativo e no Executivo. No ano que vem vamos ver como vai ser a resposta social, a resposta do cidadão, do eleitor, para tudo isso. O Ministério Público vai dar uma resposta. Mas é uma resposta técnica e jurídica. Eu vou fazer a análise da prova e entrar com a ação adequada. Vou fazer isso da forma mais célere possível, mas sem açodamento, sem atropelo. Não vou entrar com uma ação para o meu pedido não ser provido. Não vou entrar com uma ação só para responder a um clamor público que quer ver determinada pessoa punida atrás das grades. Até porque ninguém vai preso por improbidade. Improbidade perde o cargo, paga multa, perde direitos políticos. Cadeia é lá no criminal. Vamos entrar com as ações? Pode ter certeza. Agora, o momento dessas ações vai depender muito de como essa prova vai ser produzida.

 

MidiaNews – Há uma crítica constante, inclusive, dos próprios promotores, de que a forma de tramitação das ações de improbidade dificulta a efetividade, uma vez que dá um prazo grande para a defesa preliminar para só depois receber a ação ou bloquear bens, dando tempo para os investigados se desfazerem de imóveis, limparem a conta. Chega a ser comum o juiz mandar bloquear valores milionários e nada ser achado. Isso não deveria mudar?

 

Clóvis de Almeida – É a lei, eu posso reclamar, mas tenho que cumprir. A lei processual prevê que em matéria de improbidade há uma defesa preliminar e depois disso é que você vai apreciar a liminar. A lei permite isso. Eu posso não gostar, mas a lei é essa. A gente não tem saída para isso.

 

MidiaNews – Mas, isso não prejudica a efetividade da ação? Porque na própria Ararath, a ação sobre a suposta compra de vaga do conselheiro Sérgio Ricardo foi proposta no final de 2014, mas só em janeiro deste ano houve o bloqueio de bens. Quer dizer, há tempo de sobra para que o investigado, em tese, possa se livrar de bens e valores e driblar a Justiça.

 

Clóvis de Almeida – Em tese, sim. Aí a gente tem que redobrar o trabalho depois porque a gente tem que ir lá na raiz da transação comercial para provar que aquilo foi produto de crime e que aquilo foi objeto de alienação fraudulenta, e que tentou se colocar em uma situação de insolvência [falência civil] para não ter que arcar com a responsabilidade do ilícito. Isso está na lei, e o Ministério Público tem que obedecer. Nós não podemos trabalhar como eles trabalham. Nós jogamos pelas regras.

 

Eu critico, mas é o máximo que posso fazer. Agora, que a legislação não é efetiva, isso não é. O que mudou um pouco agora é a possibilidade da leniência. Podendo fazer com que a pena seja aplicada de forma antecipada, isso permite que a gente dê um retorno para a sociedade. O Ministério Público, nos últimos anos, tem destinado grandes valores a obras públicas. Não só obras públicas, mas a atividades públicas e sociais. Valores recuperados com o combate à corrupção. E isso só acontece por conta dessa atuação integrada de todas as esferas do Ministério Público e da Polícia Civil, porque não podemos nos esquecer do papel da Defaz [Delegacia Fazendária] nisso tudo.

 

MidiaNews – O foro por prerrogativa de função também não é um entrave para as investigações?

 

Clóvis de Almeida – A prerrogativa de foro da forma como existe hoje é perniciosa, mas pelo volume, pela quantidade. Não é pela investigação tramitar no órgão singular ou no órgão colegiado. O problema é o volume. Os órgãos singulares são talhados pra isso, desde sempre fazem isso. Então você tem um ritmo de trabalho procedimental já adequado para esta finalidade. Lógico que pode melhorar. Os órgãos coletivos estão sendo trazidos para a responsabilidade de atuar nessa esfera numa realidade recente. A estrutura de investigação nunca foi a prioridade desses órgãos. Tanto que o caso do Mensalão foi um marco. Desde então tem-se melhorado a estrutura. O que ocorre é uma incongruência na interpretação da prerrogativa de foro, e isso o Supremo está discutindo agora.

 

Ou seja, de você tratar com prerrogativa de foro todo e qualquer ato praticado por pessoa em exercício de cargo. Quando uma interpretação um pouco mais coerente seria você reconhecer a prerrogativa de foro em atos vinculados ao exercício do cargo. Exemplificando: você pega um deputado acusado de corrupção. Ele responde perante o Tribunal de Justiça. Se ele pratica um crime de trânsito, um crime sexual, ele não tem porque responder por isso perante o tribunal. Não tem relação com o exercício do mandato. O que confere a ele a prerrogativa de foro é o mandato. Ninguém tem prerrogativa de foro enquanto ele mesmo. A prerrogativa de foro é uma deferência à importância do cargo.

 

Agora, quando você pega um ato que não tem relação, aí sim você tem uma vala que permite que qualquer infração seja jogada nela, o que acaba prejudicando, pelo volume, a investigação dos órgãos colegiados. Se você tiver uma reorganização disso como está sendo discutido agora no Supremo, você vai ter uma total e completa modificação da visão que a gente tem da prerrogativa de foro no Brasil.

Alair Ribeiro/MidiaNews

“A prerrogativa de foro da forma como existe hoje é perniciosa, mas pelo volume, pela quantidade”

 

MidiaNews –  Sob essa perspectiva, o senhor acha que seria mais interessante esses fatos da delação do Silval, na esfera penal, continuarem no Supremo ou serem desmembrados aos órgãos competentes de acordo com o foro dos investigados?

 

Clóvis de Almeida – Isso é técnico, não é uma discricionariedade nem do procurador-geral da República nem do ministro relator. O que eles vão analisar é o seguinte: essa delação premiada fala sobre qual crime? É um crime de organização criminosa e tem alguém com prerrogativa? Fica lá. É um crime que não tem ninguém com prerrogativa? Isso vai ser fatiado por uma razão muito simples. Não existe hierarquia quando se fala em competência. Cada órgão tem a sua competência. Então o fato de não haver prerrogativa em determinados casos vai tornar a decisão do órgão incompetente absolutamente inválida. Porque estamos falando de competência absoluta.

 

Da mesma forma que um órgão de primeiro grau não pode se substituir a um órgão colegiado, o órgão colegiado não pode suprimir a instância e se substituir a outro órgão. A visão que eu tenho é que isso não foi fatiado agora porque ainda há diligências a serem realizadas, ainda há documentos a serem analisados. A partir do momento em que estiver definida a responsabilidade de cada uma das pessoas envolvidas na colaboração, isso obrigatoriamente vai ser fatiado e encaminhado ao órgão adequado.

 

MidiaNews – Sendo fatiado e as investigações penais em relação aos deputados e ex-deputados descerem ao MPE, o senhor acredita na possibilidade de prisão?

 

Clóvis de Almeida – Em relação aos deputados que ainda estão no cargo, a Constituição Estadual proíbe a prisão. Só pode ocorrer se houver flagrante delito. Ou seja, ainda que existam 50 vídeos deles pegando dinheiro, não há como prender. Mas quando baixar a investigação, os promotores criminais vão fazer essa análise. Para ter prisão, é necessário ter os requisitos da preventiva presentes. Se não estiverem presentes, a gente pode saber que ele cometeu um crime, que é responsável por aquilo, mas que não há como prendê-lo antes da sentença.

 

MidiaNews – Na delação, Silval também citou as propinas nas obras da Copa, como no VLT e na Arena Pantanal. Mas, lá no começo das obras do VLT, o senhor e membros do MPF tentaram barrar a obra pelas dezenas de irregularidades. Na época, essas situações já eram conhecidas?

 

Clóvis de Almeida – Essa investigação começou com a gente, só que demorou todo esse tempo para amadurecer a prova. Agora, de todo modo, essa investigação fica com a Polícia Federal.

Não é possível que alguém, em sã consciência, analisasse as questões técnicas envolvendo o VLT em Cuiabá e imaginasse que seria realizado da forma como foi dito à população

 

MidiaNews – O senhor se sente frustrado pelo fato de a Justiça ter autorizado o VLT, apesar de todo o alerta, e agora ver esse R$ 1 bilhão no ralo, a cidade estar arregaçada de cima a baixo e sequer sem a perspectiva de retomada das obras?

 

Clóvis de Almeida – Não só eu, como toda a população de Cuiabá. Principalmente porque todas aquelas pessoas que se manifestaram a favor dessa obra, daquela forma, tem que se sentir, no mínimo, enganadas. Quem apoiou o VLT, ou apoiou porque estava iludido ou porque recebeu alguma vantagem. Porque não é possível que alguém em sã consciência analisasse as questões técnicas envolvendo o VLT em Cuiabá imaginasse que seria realizado da forma como foi dito à população. Era absolutamente impossível no valor proposto, no prazo proposto. Os números eram absolutamente incongruentes. O projeto era lacunoso, não havia viabilidade técnica de se executar aquela obra da forma como foi alardeada.

 

O fato de isso ser autorizado pela Justiça não foi uma derrota do Ministério Público, mas uma derrota para a população. Porque o dinheiro que foi gasto saiu do dinheiro dos tributos que todo mundo paga. Eu paguei, você pagou, o Brasil pagou, porque veio dinheiro da União. Quem andava no trânsito de Cuiabá viu a dificuldade que ficou se locomover, tivemos um evento que não contou com o meio de transporte que alegadamente ficaria pronto para a Copa do Mundo. E tivemos aí um gasto de R$ 1 bilhão consolidado, mais o valor que se gasta mensalmente para a manutenção disso tudo. Sem perspectiva nenhuma de saber o que vai ser feito com esse passivo todo.

 

MidiaNews – Por conta da Operação Descarrilho, que desnudou a corrupção no VLT, o Governo já descartou a possibilidade de voltar a negociar com o consórcio responsável. O senhor ainda vê alguma solução para a obra?

 

Clóvis de Almeida – A decisão não é muito complexa tecnicamente. É politicamente muito complicada. Tecnicamente é simples: tenho dinheiro para fazer ou não tenho dinheiro para fazer. Se tem dinheiro, execute. Já gastou R$ 1 bilhão, então termina, senão vai ter que engolir o prejuízo. Se não tem dinheiro para fazer, monte uma equipe técnica para avaliar a melhor forma de minimizar esse prejuízo.

 

Agora, politicamente é outra história. Porque terminar esse VLT foi promessa de campanha, você tem os compromissos assumidos com a população. E a população de Cuiabá precisa de um transporte mais adequado. Nós estamos não só brigando na questão do VLT, mas na questão do ônibus há mais de uma década. As ações obrigando a licitação do ônibus, a melhoria de qualidade são antigas. Essa frente não vai ter uma solução rápida, nem uma solução fácil.

 

E o VLT tem esse agravante de que foram gastos R$ 1 bilhão. O que é melhor: recuar ou caminhar até o final?

Fonte: MidiaNews

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