Contas à vista

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PL 7.448 desequilibra equação entre custos e riscos da escolha pública

24 de abril de 2018, 8h55

Por Élida Graziane Pinto, Ingo Wolfgang Sarlet e Jessé Torres Pereira Junior

A forte celeuma sobre a sanção ou o veto do PL 7448/2017 ocupou o espaço das duas últimas colunas[1] “Contas à Vista”, a cujo debate também nos dedicamos por vermos aqui um tensionamento estrutural para os rumos não só do Direito Público brasileiro, como também para a maturidade do processo decisório democrático em nosso país.

De saída, cumpre registrar um aviso metodológico no sentido de que nossas observações aqui consignadas têm cunho de análise preliminar, sem pretensão de esgotar o exame da proposição enviada à sanção presidencial. Em respeito ao profícuo debate doutrinário e institucional já instalado sobre o assunto e sem prejuízo de posterior aprofundamento das múltiplas questões que ele enseja, urge, ao nosso sentir, levantar alguns aspectos problemáticos para chamar a atenção e abrir o contraditório.

As pretendidas alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro alegadamente buscam distribuir os ônus da escolha pública, compartilhando com as instâncias de controle a responsabilidade pelo exame de alternativas (artigo 20), consequências (artigo 21) e “obstáculos e dificuldades reais do gestor” (artigo 22).

O aludido esforço de estabilizar o horizonte interpretativo é corroborado por conceitos indeterminados e estratégias francamente voltadas à preservação de decisões e de “orientações gerais da época” (artigo 24). São exemplos disso o regime de transição do artigo 23, a “ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa” prevista no artigo 25, a possibilidade de compromisso/transação prevista do artigo 26, a hipótese de se impor medida compensatória disposta no artigo 27 e o fomento à consulta pública no artigo 29. Em paralelo, o cabimento da responsabilização pessoal do gestor por culpa foi suavizado, uma vez que será necessário — para tanto — o “erro grosseiro” a que se refere o artigo 28. Por fim, o norte da segurança jurídica que marca a iniciativa legislativa em comento é reiterado no artigo 30, a pretexto de fecho das alterações inseridas na LINDB.

Interessante notar, a partir do breve panorama descritivo acima, que — após décadas de redução do espaço da discricionariedade administrativa/ técnica[2] e de consequente majoração das instâncias e possibilidades de controle — o pêndulo reformista do PL 7.448 indica querer construir uma rede de responsabilidade compartilhada, paradoxalmente reduzindo o escopo do controle preventivo e concomitante. Eis uma contradição em termos, já que a grande aposta do projeto reside na estabilização decisória por meio — em última instância — da ação de declaração de validade, o que, por óbvio, tende a dar causa a uma sensível majoração dos litígios judiciais concernentes à própria aplicação do Direito Público.

Apostar em controle judicial posterior para equalizar a baixa qualidade do diálogo interinstitucional entre gestores e controladores tende a interditar o próprio fluxo comunicativo ordinário, sobretudo com o tensionamento interpretativo entre Poder Executivo, de um lado, e Ministério Público e tribunais de contas, de outro. Isso não se equalizará, por certo, com a mera remissão indireta e longínqua às consultas públicas, como parâmetro adicional e um tanto protocolar de legitimidade das decisões administrativas.

Ideal seria que o exame de alternativas e consequências estivesse, desde a concepção das políticas públicas, profundamente enraizado no planejamento setorial e orçamentário que lastreia a legalidade e a legitimidade decisória do administrador público, sem prejuízo da verificação de economicidade ao longo da execução dos programas.

Não estaríamos a viver um campo aberto de disputa interpretativa se as metas físicas e financeiras de cada ação governamental fossem o núcleo positivado das escolhas governamentais, inclusive para fins de identificação do estágio evolutivo de tutela dos direitos fundamentais. Ora, houvesse melhor diagnóstico e prognóstico das políticas públicas nas leis que lhe regem o ciclo dinâmico das escolhas estatais, o princípio democrático indubitavelmente seria mais prestigiado e reforçado na etapa do controle que se prestaria a testar a aderência dos custos e resultados alcançados à luz daquelas metas formuladas, tal como exige o artigo 74, incisos I e II da Constituição de 1988.

Tamanha é a fragilidade do planejamento e do controle interno que deveria, sobretudo, verificar se o executado atendeu ao planejado, que a falseada contenda em torno da atribuição do ônus da prova em relação ao exame de alternativas e consequências se revela um verdadeiro jogo de empurra-empurra. Ora, tal responsabilidade é precípua do gestor, tal como determina o parágrafo único do artigo 70 da Constituição, sendo sua delegação implícita aos órgãos de controle, como sugere o PL 7448, uma forma de compartilhar o próprio déficit de concepção legislativa inaugural do planejamento. Daí decorre um controle interno esvaziado de sentido reflexivo e um ciclo pobre de aperfeiçoamento institucional nas políticas públicas que pouco entregam o que a sociedade identificara como prioridade alocativa nas leis orçamentárias e nos planos setoriais.

Giovanni Sartori, em sua Teoria da Democracia Revisitada[3], bem nos lembrava que há custos e riscos nas escolhas públicas feitas democraticamente em nome da sociedade. Os custos se verificam na perspectiva de que quanto maior o número de pessoas que participam do processo decisório, maiores são os custos envolvidos, haja vista a decorrente majoração da dificuldade em se aviar a produção tempestiva de consensos ou em se chegar a dissensos toleráveis[4]. Por outro lado, os riscos hão de ser consignados do ponto de vista de quem sofre os efeitos da decisão, já que não teria participado diretamente do processo da sua prolação. Para Sartori, o equilíbrio ótimo seria alcançado no esforço em se diminuir os riscos (da concentração de autoridade) mais rapidamente do que são ampliados os custos (da participação), o que reclama o fortalecimento da democracia representativa, sem que reste, com isso, interditada a interação dos cidadãos nos rumos da ação governamental.

Não é o fortalecimento democrático, contudo, o que vemos no raciocínio limítrofe do PL 7.448: trata-se de ampliar o espaço decisório do Executivo, sem que seja majorada a sua vinculação ao lastro legal do planejamento que deveria lhe orientar estruturalmente a ação. A pretexto de reduzir os custos de “insegurança jurídica” nas avaliações por diversas instâncias de controle, um lócus ampliado de discricionariedade decisória é devolvido ao gestor (um retrocesso doutrinário em relação ao legado do professor Hely Lopes Meirelles?). Para estabilizar seus efeitos, a escolha discricionária pode vir a ser garantida até mesmo judicialmente na ação declaratória já mencionada.

Eis um movimento pendular que extrema a liberdade interpretativa do gestor em detrimento do alcance do controle cotidiano das ações governamentais, o que, por óbvio, implica majorar os riscos democráticos acerca da baixa fidelidade do Executivo ao planejamento que ele mesmo formulou, juntamente com o Poder Legislativo. Isso tudo seria acobertado pela dimensão do erro que não seja tido como “grosseiro”.

Quiçá o PL 7.448 esteja a defender a evolução da administração pública franqueando ao Executivo um salvo-conduto para o gestor pautar-se pela estratégia de administrar experimentalmente por escolhas típicas de tentativa e erro. Todavia não se aprimora a qualidade do gasto público e das escolhas governamentais evitando o contraste argumentativo que lhe é imposto cotidianamente pelos órgãos de controle.

Muito embora o artigo 14 do Decreto-Lei 200/1967 preveja que “o trabalho administrativo será racionalizado mediante simplificação de processos e supressão de controles que se evidenciarem como puramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco”, aqui vale o alerta de que simplificar o controle não significa acatar estoque de erros, em fomento indireto à imperícia, à imprudência e à negligência.

Ao invés de multiplicar o poder decisório unilateral do gestor, a noção de responsabilidade compartilhada reclama extensão temporal e qualitativa de instâncias de diálogo e controle, para fins de monitoramento e avaliação da política pública. Tais constrangimentos institucionais, ao cobrarem mais coerência e responsabilidade ex ante do gestor nas etapas de formulação e implementação, tendem a retroalimentar o processo com informações e instigações que permitiriam correções de rumo para a próxima etapa do planejamento.

Esse, aliás, é o alcance da noção de responsabilidade política estendida defendida por David Stark e Laszlo Bruszt[5], para quem a existência de vigilância permanente em relação à gestão pública lhe obriga a ser mais coesa e coerente ao longo do tempo:

“Por responsabilidade política estendida nos referimos à imbricação dos centros de tomada de decisões em redes de instituições políticas autônomas que limitam a arbitraridade dos governantes no poder. […] Expondo as políticas a maior vigilância, a responsabilidade política estendida reduz a possibilidade de os executivos cometerem enormes erros de cálculo em políticas extremas e sem consideração para com outros atores. A responsabilidade política estendida se diferencia […] da simples responsabilidade eleitoral porque, ao contrário do caráter episódico desta última, ela é estendida no tempo. Estendendo a responsabilidade como um processo contínuo, em curso, ela reduz as possibilidades de que o executivo possa apelar para a “crise” como tentativa de legitimar a expansão de sua autoridade eleitoral “delegada”.
[…] A responsabilidade política estendida, portanto, estendeu o horizonte temporal dos atores estatais chave, corrigindo erros de cálculo de antemão e os encorajando a pensar vários passos à frente nos jogos estratégicos da política de reformas. Como as deliberações os forçaram a ser mais responsáveis ex ante, as linhas de política pública resultantes já estavam delineadas de forma coesa e coerente, o que facilitou respostas rápidas e adaptações responsáveis com a alteração das circunstâncias. As deliberações estendidas não tornaram as políticas mais “fracas”: elas amenizaram as políticas, tornando-as mais duráveis por serem mais elásticas. A responsabilidade política estendida não comprometeu os políticos: tornou suas visões mais pragmáticas.
[…] A noção de responsabilidade estendida e seu pragmatismo programático concomitante têm implicações para nossa compreensão da coerência. Na visão convencional, a coerência das políticas é julgada pelas qualidades de consistência interna, precisão e pelo caráter geral do desenho da política. Quanto mais claro, preciso e implementado em sua totalidade é o projeto de reforma, mais coerente será a linha de política resultante. Alguns planejadores de políticas econômicas começam a questionar esta visão, ao menos ao atacar a noção de “sequência fixa”. No lugar da metáfora arquitetônica de projeto, nestes casos o desenho da reforma baseia-se em modelos da cibernética, com loopings de retorno e autocorreções construtivas. Como um programa de computador sofisticado, com uma série de subrotinas “se…então” simultâneas, o projetista monitora continuamente um vasto conjunto de indicadores econômicos em um processo de ajustamento contínuo dos principais parâmetros do modelo.”

Infelizmente o PL 7.448 não abre efetivamente espaço para a ideia de “responsabilidade como um processo contínuo”, onde os “loopings de retorno e autocorreções construtivas” possam ser erigidos no e partir do diálogo interinstitucional (accountability horizontal), porque — ao fim e ao cabo — todos os gestores tenderão a ser seduzidos pela ideia de estancar o contraditório, com o manejo preventivo e rotineiro da ação declaratória de validade.

A construção do interesse público pela Administração será menos pública do que deveria ser à luz do marco do Estado Democrático de Direito, se a própria Administração não buscar cotidiana e consistentemente absorver a ressonância dos fluxos comunicativos oriundos dos órgãos de controle e da sociedade civil.

O ciclo dinâmico e processual das políticas públicas impõe aos atos administrativos instantâneos a inserção em um horizonte estendido de motivos, pressupostos e versões em contraditório, o que confere maior juridicidade e conformidade constitucional à ação estatal.

Nem se diga que a possibilidade de uma resposta judicial última acerca dos conflitos interpretativos os apascentará de forma equilibrada e emancipatória, porque, como bem suscitado pelo terceiro articulista[6] deste artigo, a real pacificação reclama cumprimento ordinário das responsabilidades positivadas em nosso ordenamento:

Para a ciência do Direito, responsabilidade é uma obrigação secundária que se coloca no lugar de uma obrigação primária que se deixou de cumprir. As obrigações primárias são aquelas que se encontram na Constituição, na legislação e nos contratos. Quem as descumpre pode e deve ser chamado à responsabilidade, o que significa que o descumpridor será condenado a compensar as consequências materiais e morais das obrigações que descumpriu. Se as pessoas evoluírem na percepção das obrigações primárias e as cumprirem, ou se, voluntária e consensualmente, corrigirem os efeitos de descumprimentos a que a erronia humana pode conduzir, o número de demandas judiciais cairia substancialmente, demonstrando duas coisas: que a sociedade e as pessoas amadureceram e se emanciparam, tanto que passaram a prevenir ou a resolver, por si mesmas, os problemas decorrentes de eventuais descumprimentos de suas obrigações constitucionais, legais e contratuais, das quais teriam adquirido plena consciência.

A admissibilidade de sendas presumidamente menos suscetíveis ou até mesmo intangíveis ao controle cotidiano lastreia-se no pressuposto de que não haveria melhor posição que a definida internamente pelos gestores. Esse pressuposto desconhece a relação de representação que lhe funda a possibilidade de decidir em nome de outrem, razão pela qual agora clama para si uma legitimidade apriorística. Daí porque emerge, uma vez mais, o necessário debate sobre o equilíbrio democrático entre custos e riscos no exercício discricionário do poder para o atendimento de fins públicos e para o alcance da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, outro deve ser o entendimento de tais pressupostos para a ação do aparelho administrativo estatal, senão veja-se que a falta de transparência e a recusa ao controle no curso de decisões que afetam a esfera pública repercutem como apropriação privada da coisa pública.

Em meio a tantos riscos e diante da promessa da redução dos custos interpretativos, a responsabilidade compartilhada soará como quimera, cruamente substituída pela infantilização volumosa das ações declaratórias de validade (segurança jurídica especialmente concebida para preservar contratos?), sem que tenhamos aprendido coletivamente a planejar aonde nossa sociedade almejar chegar.

O vazio que sobra é o de uma oscilação pendular entre os extremos da gestão e do controle, precisamente porque não sabemos construir equilibradamente as metas, tampouco somos capazes de avaliar coletivamente os resultados alcançados (ou não) em nome de todos nós. Achar que o Judiciário equacionará, ao final, tudo isso é mais uma aposta mal resolvida da nossa democracia.

[1] Contra o aludido projeto e em busca do seu veto, Júlio Marcelo de Oliveira analisou os riscos para o controle em https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/projeto-lei-ameaca-controle-administracao-publica. Por outro lado, Fernando Facury Scaff manifestou-se a favor da sanção do PL 7.448 e reclamou controle aos controladores, para minorar os custos para a gestão pública, a pretexto de alcançar maior segurança jurídica e estabilidade interpretativa, tal como debatido em https://www.conjur.com.br/2018-abr-17/quem-controla-controlador-notas-alteracoes-lindb
[2] De acordo com Agustín Gordillo, “operou-se uma importante evolução no presente século. Antigamente se dizia que a administração tinha uma ‘discricionariedade técnica’, isto é, uma atribuição discricionária em matéria técnica que tornava insindicáveis os atos que [ela] emanasse no exercício dessas atribuições. Mas, na verdade, este antigo conceito de discricionariedade técnica dependia de um igualmente antigo conceito do que se constituía técnica: se esta é uma mera questão de opinião ou de discussão, uma arte que pode ser exercida de diversos modos e de acordo com o critério subjetivo de quem, no caso, a desempenhe, é lógico afirmar que essa atividade não pode, em tal aspecto, ser controlada. […] Para o citado administrativista argentino, “se uma técnica é científica e, portanto, por definição, certa, objetiva, universal, sujeita a regras uniformes que não dependem da apreciação pessoal de um sujeito individualizado, é óbvio que não pode, neste aspecto, falar-se de completa ‘discricionariedade’ (não submissão a normas) senão que corresponde, pelo contrário, falar de ‘regulação’ (sujeição a normas, no caso, técnicas)”. (GORDILLO, A. Tratado de derecho administrativo. 8. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2003. T. 1, X – 15-17).
[3] SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada: O Debate Contemporâneo. São Paulo, Editora Ática, 1994.
[4] Como pertinentemente suscitado em SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A trágica condição da política social. In: ABRANCHES, Sérgio Henrique; SANTOS, Wanderley Guilherme dos; COIMBRA, Marcos Antônio. Política social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. p. 33-63.
[5] STARK, David; BRUSZT, Laszlo. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo , v. 13, n. 36, p. , Feb. 1998 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000100002&lng=en&nrm=iso>. access on 07 Apr. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000100002
[6] Texto disponível em https://www.conjur.com.br/2018-jan-14/jesse-torres-2018-espero-sociedade-emancipe.

Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS, doutor e pós-doutor em Direito.

Jessé Torres Pereira Junior é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, coordenador da pós-graduação de Direito Administrativo da Emerj e professor convidado da FGV-Rio.

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