MPF estuda ações contra retrocessos da nova regularização fundiária
Neste 22 de dezembro completa um ano que Michel Temer enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) 759, que entrou em vigor mesmo antes de ser aprovada e convertida na Lei nº 13.465, em 11 de julho. O presente de Natal do peemedebista ao mercado imobiliário e aos grandes investidores veio na forma de alterações em 20 leis, entre elas o Estatuto da Cidade e a Lei de Registro Públicos, que paralisaram os processos de regularização fundiária em andamento, prejudicando sobretudo as famílias mais pobres.
Tendo sido debatida somente entre os setores empresariais interessados, a MP inovou ao legalizar a grilagem, ferir a autonomia dos municípios e ignorar o arcabouço normativo existente anteriormente – daí ser duramente criticada por pesquisadores, urbanistas e movimentos sociais ao substituir conceitos caros à política urbana sem novos conteúdos técnicos. Exemplo é trocar o conceito de “assentamentos irregulares” por “núcleos urbanos”, e tratar aspectos do licenciamento ambiental com base no antigo Código Florestal, já revogado.
E também por introduzir normas que permitem, na prática, a privatização em massa de bens públicos, o aumento da concentração fundiária e dos conflitos no campo e na cidade, além da concessão de anistia a grileiros e desmatadores. Sem contar a redução da regularização à simples titulação, desobrigando infraestruturas básicas, quando o conceito anterior previa uma série de medidas associadas a condições dignas de moradia e acesso à infraestrutura adequada.
Essas e outras questões sobre os riscos de ampla privatização das terras públicas, florestas, águas e ilhas federais na Amazônia e em toda a zona costeira brasileira, aliás, levaram o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a ingressar com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.771, no último dia 31 de agosto. A ação contempla o questionamento de 61 entidades de diversas áreas, que protocolaram na PGR pedido de inconstitucionalidade.
Coordenador do grupo de trabalho Terras Públicas do Ministério Público Federal, o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida não acredita que a ADI colocará fim às angústias de especialistas que atuam na área principalmente em defesa das populações tradicionais, indígenas, quilombolas e pequenos agricultores. No entanto, tem esperança na decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em participação em seminário realizado em São Paulo para discutir a Lei 13.465 e os desafios técnicos de sua implementação, na última terça-feira (19), Delfino afirmou acreditar que o atual comando da Procuradoria-Geral da República deverá seguir o posicionamento firmado por Janot.
“Há a informação de que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, começará a colher subsídios para emitir seu parecer sobre a ADI. Obviamente que há uma independência funcional, mas creio que ela deverá seguir o posicionamento de seu antecessor”, disse Delfino. Por isso, ele defende a união de forças sociais no debate para influenciar pontos no parecer da procuradora, e assim tentar modificar alguns aspectos da Lei 13.465. “É importante que a sociedade possa participar nesse processo, fornecendo subsídios técnicos e jurídicos para que a gente possa repassa-los à Procuradoria-Geral da República.”
Delfino afirmou ainda que está em estudo no Ministério Público Federal a elaboração de documento com recomendações ao Ministério das Cidades para condicionar repasses de recursos aos municípios à efetiva realização de melhorias urbanísticas.
Nesta semana, o grupo de trabalho sobre de terras públicas do MPF enviou recomendações ao Banco Mundial e ao governo do Piauí para resguardar direitos de pequenos agricultores, manifestandopreocupação especial com as grandes áreas justamente para impedir sobreposição de territórios de comunidades tradicionais.
O Banco está concedendo empréstimos da ordem de 1 bilhão de dólares para o Piauí, dos quais 120 milhões são destinados à regularização fundiária de quilombolas e agricultores familiares.
O estado, segundo lembrou, integra a fronteira conhecida como Matopiba, formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que é alvo do ingresso de capital estrangeiro pesado, de milhões de dólares, com um reflexo de desmatamento e pressão sobre populações tradicionais.
“E esse empréstimo, que tem salvaguardas rígidas, prevê reassentamentos involuntários, a eventual remoção de pessoas por conta de investimentos que o banco vai realizar. E nesse caso previu apenas o reassentamento involuntário de ocupantes de território de comunidades quilombolas. Outras comunidades tradicionais, porém, foram invisibilizadas nesse processo. Ou seja, comunidades que já ocupavam os territórios seriam removidas involuntariamente justamente pela concessão dos títulos”, explicou.
Marco Antonio Delfino teme mais injustiças sociais com a nova lei/ Divulgação
Emancipação
Para o procurador, as injustiças sociais no acesso à regularização fundiária dependem muito mais da tradução jurídica como uma visão emancipadora do Direito, do que de marcos jurídicos.
“Não adianta ter os dispositivos legais se o poder decisório nos institutos não têm contato com as realidades. A cabeça pensa onde os pés pisam. Se não houver contato com essa realidade, são incapazes de buscar soluções que já existem no ordenamento jurídico para esses problemas. Então, talvez o nosso problema efetivamente não seja um marco normativo, mas buscar entender toda a realidade que muitas vezes é alheia a pessoas que acabam lidando com esses instrumentos. A gente pode ter essa lei ou qualquer outra, mas as modificações nunca vão ocorrer. E isso se agrava justamente pela ausência do debate, que permite maior compreensão.”
Por conta das ameaças trazidas pela Lei 13.465, especialmente por facilitar a regularização fundiária em áreas públicas, legalizando a grilagem, Delfino acredita que o país dificilmente conseguirá atingir as metas da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
É o caso da meta 2, que pretende acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável. Em sua meta específica 2.3, segundo a qual até 2030 deve ser dobrada a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não-agrícola.
E do objetivo 11, para cidades e comunidades sustentáveis, com o objetivo de tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
“Isso tudo não tem nada a ver com o que a gente tem verificado com a criação da Lei 13.465. Até 2030, garantir o acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível e aos serviços básicos é urbanizar favelas. E as capacidades para o planejamento e gestão de assentamentos humanos, participativos, integrados e sustentáveis em todos os países. Até 2030, acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, particularmente para as mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência. Ou seja, tudo o que não há nessa lei”, afirmou.
O procurador não tem dúvidas do aspecto da mercantilização da terra com a Lei. Para ele, serão promovidas ocupações de forma intensa pelo poder econômico, tanto na área urbana como na rural.
“Essas pessoas têm absoluta certeza de que esse marco irá mudar. Hoje as comunidades não estão regularizadas, e o grupo econômico vai lá, começa a adquirir, intensamente, uma determinada área, com a promessa da prefeitura de que aquela área será regularizada no prazo enxuto. É possível, está lá, com todas as possibilidades que a legislação oferecer. E no campo a mesma coisa.”
Nesse cenário que ele considera “extremamente complicado e sombrio, a regularização de comunidades, a regularização de cunho social, é algo último nos objetivos que se pretende com essa legislação. “Ao contrário, uma abertura intensiva ao mercado imobiliário ao se permitir a regularização célere, com todos os embates que isso vai ter na nossa vida, especialmente em um cenário de competição desleal”.
O seminário para discutir a Lei 13.465/17 foi realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, com apoio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Participaram representantes da Federação Nacional dos Arquitetos, Instituto dos Arquitetos do Brasil e Núcleo de Habitação e Urbanismo de São Paulo, entre outros.
Edição: Rede Brasil Atual
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2017/12/26/mpf-estuda-acoes-contra-retrocessos-da-nova-regularizacao-fundiaria/