A Previdência de Antígona

access_time 7 anos atrás

Por Alexandre Sarquis*

‘A grande recessão pela qual passamos acentuou o receio quanto à solvência de alguns Estados e Municípios, tornando necessária uma reconsideração dos regimes de previdência dos servidores públicos’.

‘Os regimes próprios de previdência são importantes para os servidores públicos, mas em muitos Estados, seu custeio é notoriamente ausente’.

‘Apenas Estados mais atentos à responsabilidade fiscal fazem os recolhimentos de sua parte da contribuição previdenciária’.

‘Os entes enfrentam um problema de incentivos, que dificulta o custeio de seus regimes próprios. O resultado são sistemas gravemente subfinanciados’.

As frases acima parecem bem descrever o caso brasileiro de previdência dos servidores públicos, mas não foram formuladas com esse intuito.

Trata-se de excertos traduzidos e adaptados de recentes estudos científicos norte-americanos sobre o seu regime de previdência.

O fato de que um país como os EUA, em que o liberalismo econômico é particularmente forte, enfrente problemas similares aos brasileiros pode causar surpresa em muitos.

De fato, há uma acentuada desinformação nos debates que vem sendo realizados acerca do tema.

Talvez isso ocorra pois a proposta de reforma da previdência se iniciou com a extinção do Ministério da Previdência e Assistência Social e avançou com a alienação do Conselho Nacional dos Dirigentes de Regimes Próprios – CONAPREV e dos Tribunais de Contas.

Ser responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos Regimes de Previdência parece ter sinalizado tanto que se integra o problema, quanto que não se tem nada a acrescentar.

A campanha de propaganda do governo, desprovida desses interlocutores, propicia a formação de imprecisões, que se consolidam, e oferecem uma representação enviesada do problema, como que uma grande caricatura.

É uma derrota de comunicação, pois a previdência brasileira precisa urgentemente de uma reforma, de sorte a que possa continuar a existir.

A reforma da previdência deveria ser empreendida periodicamente.

Houve quem, debatendo o assunto, alegasse que todo o problema cingia-se a não existir um sistema capitalizado, mas de repartição simples.

Será?

Os métodos são mesmo tão diferentes?

Suponha um cenário A, em que os cofres da previdência não tem um centavo sequer, e todos os benefícios são suportados por recursos orçamentários; e um cenário B, em que o caixa do regime próprio está abastecido com títulos públicos com vencimentos adequados à satisfação de todos os desembolsos subsequentes.

Seja no cenário A, seja no cenário B, a sociedade deverá empreender o mesmo esforço futuro para honrar benefícios. É o que se tem denominado de ‘equivalência ricardiana’. Certamente há diferenças, mas não exatamente aquelas inferidas pela maioria.

Outra afirmação comum é que o regime previdenciário dos servidores públicos propicia desigualdade de renda. Esse é um argumento que precisa de estudo para ser corroborado.

Certamente a previdência nada faz pelos que nunca tiveram renda registrada, mas também não é imbuída desse projeto, tal função cabe à assistência social, outro braço da seguridade social.

Limitar a previdência dos servidores públicos pode, ao final, melhorar a distribuição de renda, mas pode bem ter o efeito oposto.

É preciso revelar os favorecidos no imenso jogo de soma zero da economia.

Talvez o que se pondere, enfim, é que servidores públicos são beneficiados por salários muito elevados, e o que se deseja é moderar tal compensação limitando-lhes a previdência.

Tal inferência não é sem sentido, uma vez que cada ano a mais de expectativa de vida implica em um aumento salarial real para aqueles com cobertura previdenciária integral, se considerarmos o conceito de previdência englobado pelo conceito de remuneração.

Entretanto, implícita nessa tese de altos salários do funcionalismo, encontra-se a hipótese de que servidores públicos não desempenham atividade verdadeiramente produtiva.

Essa impressão é justa? Com qual perfil exatamente deve-se realizar a comparação?

Por vezes o regime previdenciário dos servidores públicos é chamado de ‘regalia’.

Isso é muito curioso, pois ‘regalia’ tem como raiz a palavra ‘regal’, ou seja, é relativo ao Rei e à Monarquia.

O advento do funcionalismo concursado e estável em todos os cargos é um triunfo da República, que superou impressionantes resistências até 1988, quando enfim se suprimiu de nossa Constituição a expressão ‘primeiro provimento’.

Desde então a admissão para todos os cargos do funcionalismo público não olha origem, status ou aparência, salvo para favorecer os mais fracos, observados os limites legais. Previdência saudável, se algo, é o antônimo de regalia.

Há alguns anos, em um grande município do interior paulista, cujo funcionalismo é ligado ao Regime Geral de Previdência Social-RGPS, cogitou-se transformar empregos públicos em cargos públicos, instalando um Regime Próprio de Previdência Social – RPPS apenas para servidores públicos.

Houve forte reação da sociedade e a alteração não pôde ser feita.

A rejeição não se deu por conta de eventuais privilégios que seriam criados.

Ao contrário, a negativa partiu do próprio funcionalismo, que não quis abandonar o RGPS e ingressar no supostamente mais benéfico RPPS.

Essa evidência é difícil de reconciliar com a propaganda que vem sendo oferecida.

O que mais assusta, entretanto, é o senso de urgência que parece sublinhar o discurso, que pontua ser a reforma um imperativo sem o qual não haverá como saldar obrigações iminentes nos próximos exercícios financeiros.

Tal argumento deixa a impressão de que se pede ao Congresso que autorize um simples calote nos credores do Estado.

Um calote em credores que, até outro dia, seriam legalmente reconhecidos com idosos o suficiente a pleitear repouso remunerado.

A reforma merece um debate científico, franco e permanente.

É o conflito intergeracional essencial, que remonta a tempos imemoriais, desde que as pessoas decidiram cuidar de idosos, órfãos e inválidos, honrando herança e tradição. E, como naqueles tempos imemoriais, a decisão é de emoção, mas também é de cálculo.

Talvez o Governo esteja patinando no debate por ter exagerado na emoção, enquanto a sociedade deseja simplesmente ver o cálculo.

O único que parece interessar ao governo é o número de deputados inclinado a pressionar esse ou aquele botão no sistema do painel.

Na Argentina foram 128 votos a favor e 116 contra. A se repetir tal percentual no Brasil, a proposta estará rejeitada.
Mais do que vencer etapas legislativas da PEC como se fossem uma imensa gincana de empecilhos jurídicos no caminho para se deitar em papel o que um pequeno comitê concluiu ser o remédio para as imensas mazelas brasileiras, é necessário convencer a sociedade brasileira da necessidade e da justiça de tal ato.

A sociedade brasileira envolve os servidores públicos, os segurados do INSS, suas famílias, os que deles dependem e os que neles confiam.

Não são poucos. É necessário olhar os prejudicados nos olhos e ir com eles, de mãos dadas, deixando cristalinamente claros os porquês e os comos. A Lei não é o que um diz, apesar dos protestos dos demais.

Na tragédia grega de Sófocles, Antígona prestou seus respeitos religiosos a um inimigo do Rei Creonte, apesar deste ter expressamente proibido tal conduta.

Quando, em julgamento, o Rei interrogou Antígona porque ela desrespeitara a Lei, ela diz não reconhecer a Lei: ‘nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não escritas, perenes (…) pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram’.

Honrar o que se promete, repartir os cuidados na sociedade e não desfazer as certezas daqueles que alcançam um ponto da vida em que não têm mais como optar por outro caminho.

Esses são pactos que podem ser revistos com o tempo – e serão revistos, a bem da saúde financeira do Brasil.

No entanto, ignorar que se encontram enraizados no senso de direito das pessoas e oferecer argumentos parciais, injuriosos ou pirotécnicos no intuito de tutelar a sociedade a escolher o que se entende melhor, dispensando a opinião de especialistas, havendo ou não razão, não é forma idônea à produção da Lei.

* Alexandre Sarquis é diretor da Atricon – Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (2018-2019)

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